MEU AMIGO RENAN, UM HOMEM DO CALHEIROS
Quando eu era criança, além de mamãe dizer bilu-tetéia, eu costumava correr nos laranjais de papai. Ele estava perto de 5.000 acres, do que ele costumava chamar de é laranja pra calheiros. Eram 5.000 acres, mas do vizinho. Ele mesmo tinha o quê, meia dúzia. Mesmo assim, era uma sensação ouvir o canto dos pássaros, eu identificava cada um pelo tom e pela melodia. Era a melhor maneira de escolher o tamanho da pedra para pôr no estilingue. Bons tempos. Hoje as ONGs já providenciam até advogado para indenizar a família do sabiá. O dono do imenso laranjal tinha um filho. Seu nome era Renan. Eu o conheci menino como eu, quando o flagrei roubando nossas laranjas. O roubado fica doce, ele me dizia por trás dos seus óculos nerd. O ensinamento utilizo até hoje como incentivo a um jornalismo honesto e incorruptível. O rio da vida nos levou em água turbulentas até que nos separamos numa pororoca. Seu curso o levou para um oceano de negociatas, exploração de pessoas humildes, licitações mórbidas, cartas marcadas. Enfim, um empresário, um político, um homem de sucesso. Eu, jornalista, estou há seis horas plantado na sala de espera do seu gabinete faraônico de presidente do Senado em Brasília, na promessa de uma exclusiva. Não ligo para o tempo, o tempo é efêmero, como disse sabiamente o motorista da viação Cometa com o qual vim conversando por doze horas a fio até chegar a Brasília. A secretária do doutor Renan me observa. É uma loira, peituda, ela cruza as pernas de Claudia Raia num movimento que me faz lembrar Sharon Stone. Mede-se o sucesso de um homem pela sua secretária, alguém já disse, creio que foi meu amigo Bill Clinton, ele que largou a patroa que ainda dava um bom caldo pela gordinha. A deusa me avalia de baixo até em cima, começando pelos meus tênis Olympicus, minha calça desbotada, ou coisa assim, comprada numa loja de turco em 2001, depois de assistir na tevê a destruição das torres gêmeas numa lanchonete comendo pastel e um pingado. Minha camiseta amarelada pelo tempo e pelo desodorante Avanço multi-proteção. Eu tiro do bolso o último cheetos da viagem (não existe viagem de ônibus no Brasil sem cheetos), o pacote sai amassado, e do fundo do bolso traseiro, o último, o cheetos, o que sobreviveu. Eu o ofereço à deusa, esmigalhando-se em meus dedos, farelos no carpete: Servida? Uma barata de pernas quebradas receberia em resposta um olhar com mais comiseração. Cheetos não é unanimidade nacional, concluo. Humildemente, aindo tento um último lance: um motelzinho, nem pensar, não é? Seu Renan vai recebê-lo agora, ela desconversa, elegantemente. Chinfrim! Me saúda Renan, a velha amizade. Entre, mas tire essa sola velha, capaz de ter pisado em merda de cachorro, esse tapete persa foi recém superfaturado. Tenho novidades, exclusivas, uma boa, uma má. Qual você quer primeiro? Os anos de experiência me dizem que é melhor receber a paulada primeiro, depois tudo é lucro. A má notícia é que, você vai ter de aparecer como meu laranja, pra livrar minha cara, assumir a safadeza toda, sabe como é. Meus colegas de casa me absolveram, o Papa quer me canonizar, alguém tem de tirar o lixo. Vou deixar meu advogado à disposição, coisa de dez, quinze anos de cadeia, depois você sai numa boa, arrumo uma aposentadoria pelo INSS, você envelhece com 250 reais por mês. Pela velha amizade. Uma pequena decepção, a lembrança da imagem lúdica: o menino das laranjas. E a notícia boa? - , pergunto, um último alento. Notou minha secretária nova, a loiraça? Como não, a velha calça jeans molhada pela masturbação mental. Pois, é, rapaz, tô comendo!
